quinta-feira, 9 de julho de 2020

10) - Galinha na farofa


10) Galinha na farofa...         
      

Em 1967 eu prestava Serviço Militar Obrigatório no 4º Regimento de Cavalaria do Exército, na cidade de Santiago, como Cabo do Exército. Quase toda a sexta-feira, viajava para passar o final-de-semana em Jaguari com a Família, onde Eni - uma Alma Santa, quase irmã – se desdobrava em carinhosa atenção, lavava e passava minha farda e ainda preparava o jantar à minha espera, quando eu chegava próximo das 21h00min.. Esse jantar se tornava um momento glorioso, pois eu o devorava como um cachorro perdigueiro que perdeu o dono!

O ônibus, vinha de São Borja e seu horário de chegada em Santiago, 19h00min. Esse trecho, bem como até meu destino final era todo de estrada de chão, sem asfalto com muito barro e onde não tinha barro, pedregulho. Dessas estradas de péssima qualidade à época, que não deixam nenhuma saudade!
Para chegar à rodoviária local, eu tinha que caminhar uns quatro quilômetros logicamente a pé.  Isso exigia sair do quartel uma hora antes assim, perdia “o rancho”. Para quem não conhece os termos da caserna, significava perder o jantar. 

Acreditem, algo regular em Soldado é estar sempre com fome. Jovens que madrugam, passam o dia todo com atividade física extrema e tem no tal rancho uma comida – que pode ser plenamente nutritiva – mas de sabor muito discutível. Não queria dizer péssimo sabor, mas na verdade sem condenar as Forças Armadas, afinal “não é o momento”, mas era de péssimo sabor sim! Horrível. A carne sempre a mesma coisa, parece ter apenas uma fervura. Macia, mas de cor cinza clara e gosto de nada, nada... Feijão, “arght”, era o pior! Arroz do tipo unidos venceremos e muitas vezes vinha mais uma coisa pastosa que se descobria depois de provar: - Era batata inglesa cozida... E a salada.... Que salada? A Quantidade de comida era excelente, mas não dava para EU ir além da metade... Os demais colegas comiam tudo e saiam satisfeitos e eu ainda com fome!

Neste dia, chovia muito e era comum o atraso do ônibus, de várias horas. Foi o que aconteceu nesse dia fatídico. Umas quatro horas de atraso. À medida em que o tempo passava – eu havia almoçado ao meio dia em ponto, "aquele almoço" -  a fome tornava uma situação dramática para um menino pós adolescente faminto, sonolento e cansado.

Finalmente o embarque. Ônibus lotado e previsão de atraso ainda maior para chegar em Jaguari. Meu jantar em casa - mesmo sem saber o que seria servido  - não queria nem pensar pois corria água na boca, tamanho o apetite pois esse seria provavelmente muito depois da meia noite.

Uma poltrona livre para sentar, nem em sonho! Então sem esse sonhado lugar, viagem em pé o tempo todo. Exausto fixei meu braço direito no bagageiro, recostei a cabeça sobre o cotovelo do braço curvado e segui viagem. Tentei cochilar para esquecer a comida que me esperava.

Subitamente uma freada brusca, um solavanco perdi o equilíbrio escorreguei o braço na tentativa de me segurar e minha mão correu em meio a sacolas do bagageiro, rebentando um pacote qualquer e minha mão se enterrou dentro dele.
Me recompus e senti que sujei as mãos em algo áspero e gorduroso. Era só o que me faltava... O que seria isso? Cautelosamente cheirei os dedos daquela coisa estranha! Hummmm! O cheiro era surpreendente, ótimo. Parecia e era, o cheiro maravilhoso de galinha frita e na farofa, com aquele delicioso tempero caseiro!

Agora sim, se não soubesse nadar, morreria afogado de tanta água na boca.... Olhei para os lados, ônibus roncando seu motor em meio ao lamaçal, cabine totalmente escura, silêncio, ninguém viu meu “acidente manual”, todos passageiros dormindo... Aproximei um pouco mais e fui delicadamente com a mão ao mesmo “endereço”. Toquei e reconheci o objeto. Era uma cocha de galinha. Agarrei-a com a volúpia de um prisioneiro faminto nos tempos do Império Romano! 

Acreditei que qualquer crime de furto, naquela hora seria  de fácil absolvição, afinal eu era um viajante em abstinência alimentar de muitas horas. Se condenado, valia a pena! 
Ainda discreto trouxe aquela peça preciosa e a enterrei na boca. Em segundos se tornou um osso limpinho, lustro, seco! Não lembro se cheguei a mastigar, mas tenho certeza que engoli!

E agora? Onde colocar esse “osso usado”? De volta às suas origens, à sua sacola, ora.... Lá fui eu devolver o osso. Com a mão na sacola novamente, onde estavam muitas outras peças de galinha, a mão desocupada, aproveitou a “viagem de retorno” e me surpreendeu quando voltou lotada novamente, acho que com um pedaço de peito igualmente delicioso! (Cabe aqui uma explicação técnica de que em um estômago faminto, o cérebro deixa de comandar o corpo de forma ditatorial e a mão, em conjunto com a boca, adquire “Vida Própria” comandando todos seus movimentos).

A partir desse pedaço passei a mastigar normalmente, como se eu fosse um Ser Humano Normal! Pois essa operação de leva-e-traz se repetiu mais umas oito vezes, mas sempre recolocando respeitosamente de volta o osso vazio, nu, limpinho, lustroso no seu devido lugar!
Minha gente, mas que baita jantar eu fiz! Foi de lamber os bigodes!

Ao chegar em casa a mãe e a Eni estranharam eu recusar o jantar. Acreditem, eu já havia feito um dos melhores jantares! Prova disso é que são passados mais de cinquenta anos e de todos os bons jantares que já participei, esse foi o inesquecível!


Porto Alegre 09 de julho de 2020.

20 comentários:

  1. Espetáculo, amigo Fausto... não servi nas forças armadas, mas meu pai, meu tio e meu cunhado, me contam muitas histórias boas... saudoso abraço tricolor...

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  2. KKKKKKK um pecado bem justificado KKKKKKK 😀😂😂

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  3. Muito bom, o apetite continua igual até hoje, se não me engano, mas as iguarias melhoraram!

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    1. Pois foi naquele noite meu Professor, que me tornei um glutão!!! Heheheh

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  4. Cada dia era um Causo,saudoso tempo,em servimos a pátria.

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    1. SD 524: De fato cada dia era um caso e como ainda sinto saudades daquele período!

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  5. Valeu Fausto!São histórias, que não podem ser esquecidas! Kkk

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  6. Lembro bem dessa época Fausto.. lembro de te ver de farda , e eu achava lindo..!! Nem sabia que lá tu passava tanto trabalho. Bela crônica!!

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    1. Pois é Tânia, foi um período duríssimo, mas valeu a pena cada minuto vivido na Caserna! O "guri" amadurece e se torna um homem de verdade! Obrigado por teres gostado da Farda!!! Hehehehe...

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  7. Eu adoraria ler a história do dono(a) da galinha, o mistério do sumiço da carne e a surpresa dos ossos.

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  8. Nossa que louca história. Só vc mesmo. Gostaria de saber da história da dona do seu jantar. Bjs

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    1. Por muito tempo eu pensava na decepção do viajante ao encontrar seu jantar "corroído" por alguém! Por um tempo eu ria, passado meio Século começo a sentir um pouco de remorso, só um pouco porque valeu a pena! Hehehehe...

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  9. Muito boa Fausto.
    Que saudades da galinha na farofa feita em casa daquela época, comida quase que obrigatória nas viagens de longa distancia. Muito me deliciei nas viagens de trem de Jaguari para Porto Alegre.
    Fiquei vom pena é do coitado do dono(a), imaginando a tristeza dele quando, no meio da viagem e com a fome parecida com a tua, se deparou com o monte de ossos. Ainda bem que deve ter sobrado um restinho da farofa para ele se lambusar.

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    1. Por muito tempo eu pensava na decepção do viajante ao encontrar seu jantar "corroído" por alguém! Por um tempo eu ria, passado meio Século começo a sentir um pouco de remorso, só um pouco porque valeu a pena! Hehehehe...

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  10. O frango deu água na boca! Ainda bem que botou os ossos no lugar 😄😄😄

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  11. Com certeza deve ter sido um jantar delicioso, pela adrenalina da situação e pela fome. A vida no quartel é dureza e a comida deixa muito a desejar. Bela aventura!!

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  12. Obrigado amigo e conterrâneo Fausto por compartilhar suas historias/estorias, são muito bem vindas, pois alegram o meu dia também, estou rindo até agora. Não fui servir, mas sei de muitas historias boas..valeu. Abraço fraterno.

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  13. Me lembrou das galinhas com farofa que minha mãe fazia, ela distribuía um pedaço de galinha com um ovo cozido. Não encontrou nenhum ovo no seu banquete. Kkkkkkkk

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  14. Esse comportamento humano que sempre o melhor é o proibido! E é mesmo, kkkkkk

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