quarta-feira, 30 de setembro de 2020

22) A Estação do Trem!

Meus amigos leitores,


Por coincidência a publicação dessa crônica - foi o Décio que me lembrou isso - hoje se celebra  o aniversário de criação da nossa RFFSA, quando muitos ferroviários comemoram também como "Seu Dia", embora o dia oficial desse Profissional seja 30 de abril! Nosso afetuoso abraço a essa classe de trabalhador. Como nosso Brasil seria melhor, se o modal de transporte de passageiros tivesse um percentual mais expressivo, na ferrovia!

Quanto me encanto com os trens da Europa - tanto carga como passageiros - desonerando as vias rodoviárias e facilitando tanto o trânsito como lhe dando maior segurança! 


22) A Estação do Trem!


São tantas as histórias de trens no nosso passado, especialmente os de passageiros, que cada estação guarda sempre algum símbolo que desperte emoção em nossos corações! Até o cheiro de carvão da "Maria-Fumaça" ficou indelevelmente marcado em nossas memórias. 

Em Jaguari sua chegada, era um momento muito aguardado. Vinha de Porto Alegre destino São Borja, alternando com Cerro Largo. Nele vinha o jornal Correio do Povo do dia anterior, as notícias, vendedor de revistas diferentes, amigos e parentes. Só alegria! Contrapondo no sentido inverso quando esse partia rumo à Capital, dia de despedidas. Melancólico! Como tudo na vida, o mesmo som do apito que significava chegada de alguém com um abraço alegre com a despedida umedecida em lágrimas!

Aqui começa uma saborosa reflexão de interpretação de ordens superiores, que sempre devemos ter em mente sua profunda e verdadeira intenção. Não sou do tipo que estimula a constante negação de ordens que vêm de cima, também não apoio aquele subordinado carimbado de "concordino" com tudo o que o chefe manda. Do tipo que privilegia aquela máxima popular que: "O saco do chefe é o corrimão do sucesso"! 

Pois num Verão, já absurdamente quente, o nosso Chefe da Estação  passou a adotar

um comportamento, ou melhor, um uso de indumentária pouco usual para a temperatura reinante, no mínimo estranha. Usava não só ele, mas seu Guarda Trilhos também um grosso sobre tudo de lã preto, tipo “Capas Ideal do Renner", muito conhecidas à época por seu forte apelo contra o mau tempo e frio rigoroso. Não seria tão estranho, não tivesse ele mantido o hábito durante o forte Verão. Aliás, já comentei em crônica anterior o quão severo é o Verão naquelas bandas.

O fato em questão: - Alguns minutos antes da chegada do trem, lá iam ele e seu principal funcionário vestir um robusto sobretudo. O trem partia e os dois suando de dar dó. O Guarda de Trilhos, magro, ficava pálido, parecia que ia desmaiar. Recuperava-se depois de um balde de água de poço! O Chefe, que era gordo, imenso, chegava a emitir finos gemidos pelas narinas. Quase um choro. Olhos arregalados tamanho sacrifício que a vestimenta impunha. Encharcava seu lenço com suor misturado com o picumã do Maria Fumaça. Alguns diziam que ele era louco, mas não podia ser loucura nos dois simultaneamente  no mesmo formato, mesmo sintoma ao mesmo tempo. Sei lá, algo realmente para ser estudado a fundo e foi o que a Comunidade Local resolveu fazer. 


No domingo depois da missa se reuniram alguns amigos e suas esposas no café do Roberto, tomando uma ou algumas "batidas de limão" a discutir como orientar o pobre a se afastar do inexplicável e ridículo sacrifício. Os desgraçados podiam ter um mal súbito e morrerem, tamanho o estado depauperado que ficavam! Na reunião discutiram por horas e montaram uma estratégia para ajudar o pobre vivente. A decisão foi de que uma comitiva dos mais intelectuais iria conversar com ele. Selecionados os que poderiam abordá-lo de forma sutil a não correr risco de eventualmente ofendê-lo ou até assustá-lo.  O negócio é pegar leve e afastar aquele ideia maluca, bem como a de seu funcionário. "O assunto tem que ser tratado com jeito", disse um dos participantes. Escolhido o mais diplomático para chefiar a comitiva e lá foram eles na segunda-feira. Ênfase: Sutileza!

- Buenas thê! Como tu tá lôco da cabeça, nóis tamo aqui prá te amarrá numa soga e te entregá na ambulância do Hospício São Pedro. É prá lá que vamo te levá. E nem me faz gritedo que já to acostumado carneando porco!

-  Mas o que é isto vivente? Me solta!

- Tu tá aí suando feito um matungo que perdeu a cancha reta e não tira esse sobretudo de lã, com esse baita calor, só pode tá lôco!

-   Que nada. Tô cumprindo ordem tchê! Os chefe tão preocupado com a segurança. Vô te amostrá o telegrama de serviço que eu tenho que obedecê, vivente!


De fato, ele tinha razão. Ordem escrita com recomendação expressa no final do telegrama:


...FINALIZANDO VG MUITO CUIDADO COM A SEGURANÇA VG SOBRETUDO NA HORA DO TREM...”


Assim tudo ficou esclarecido, devidamente explicado e resolvido através daquele telegrama da Chefia. Comissão plenamente satisfeita foi dissolvida na hora e a vida volta ao normal, inclusive com o sobretudo. Na sequência, a cordial celebração do entendimento entre as partes, com mais algumas rodadas de batida de limão (que é ótima, recomendo!), mas dessa vez no bar do seu Alvino M., onde a batida vem até gelada!

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

21) Bat Masterson

Meus amigos e leitores,

Primeiramente peço desculpas, se em meu último blog da quinta-feira passada, com o "Drama do Hospital" tenha ficado uma leitura um pouco pesada. Coloquei ali naquela crônica, um período muito difícil da minha vida e que posso garantir, uma divisória das etapas da minha existência. Estava na ocasião aos cinquenta anos de idade e é precisamente o momento do homem - refiro-me ao sexo masculino - que grandes mudanças ocorrem, pois ali ao nos tornarmos "cinquentões" atingindo o ápice de nossa Vida, tanto no plano físico como intelectual. Podemos nos manter por anos naquele patamar e na sequência o "declínio garantido" da Espécie!

O "Drama" foi incluído exatamente porque tive a Grande Graça de tornar um momento de dor lancinante num "pós riso", e o que tudo indica, é de que rindo, a Vida se torna melhor, sempre!

Hoje volto à minha Infância, tão divertida e feliz que tive para contar uma peripécia ingênua e divertida:


21) Bat Masterson.                                                                              


Eu tinha uns dez anos de idade quando se passou este fato: O “
Papito” - como chamávamos nosso pai - tinha no galinheiro de nossa casa, uma belíssima criação de galinhas da raça Plymout. Galinhas enormes de penas alvas. No meio destas, algumas crioulas também. Havia um galpão velho na porteira do galinheiro. Lá se armazenava milho e farelo de arroz em tonéis, para o alimento das penosas. Esta área onde elas viviam, era também um amplo pomar, onde sempre tinha alguma fruta madura.

Na hora da sesta, enquanto todos dormiam, eu tinha o hábito de ir “lá atrás” brincar, subir em árvores, comer frutas. Esta não era ainda hora de alimentar galinhas, o que acontecia ao entardecer pelo comando do Papito logo, nessa hora já estavam famintas. Embora criança, já com “espírito de porco”, fiz uma brincadeira comigo mesmo, para rir depois: Ao abrir o portão para meu passeio pelo pátio, eu jogava uma lata cheia de milho e cantava bem alto um pequeno trecho da música que aprendi numa revista em quadrinhos do Bat Masterson:

- "No velho Oeste ele nasceu e entre bravos se criou, seu nome-lenda se tornou: Bat Masterson, Bat Masterson!"

Bat Masterson era um herói da tal revista da época e sua música pueril, fácil de decorar por apenas um verso. 

A reação das aves era espantosa enquanto habituadas à premiação em milho. Corriam entusiasmadas em alta velocidade ao meu encontro para ganhar seus prêmios. Apreenderam rápido. Eu repetia a ritualística diariamente. O estímulo, o som da canção significa para elas “vem milho” e isso ficou bem registrado na reduzida mente das aves!

Passado algum tempo, chegou lá em casa o Buby, de São Pedro do Sul, primo do Papito, que era viajante. Ia seguido com seu Jeep e almoçava conosco, às vezes hospedava por um dia. O Buby, com seus 1,90 m. de altura, homem de seus quarenta e tantos anos, calmo e de fala mansa, não sesteava. Num destes pós-almoço, todo mundo ”abraçado ao deus Morpheu”, ficamos nós dois acordados e eu o convidei a comer laranjas. Topou. Lá fomos nós. Ele caminhava mantendo sua enorme mão sobre minha cabeça, como me conduzindo ou como se eu, no meu pequeno porte, fosse sua bengala. Ao aproximar-nos do portão, disse a ele orgulhoso:

- Sabe Buby, aqui em casa as galinhas gostam muito de me ouvir cantar!


- É mesmo Fausto?! Que bonito! É, tu deves cantar muito bem, claro!

Disse ele com riso escondido em tom de “faz de conta que eu acredito”... Crianças sempre tem estórias para contar! Quando abrimos o velho portão de madeira e tela, soltei a voz:

- No velho oeste ele nasceu...”

A recepção das “minhas fãs penosa” foi extraordinariamente calorosa como era todos os dias. Imaginem cerca quarenta galinhas enormes que vinham com tudo, surgiam de todo canto fazendo um alarido imenso, se batendo umas nas outras aos escandalosos cacarejos, desesperados, voando tábuas, virando latas, levantando uma poeira imensa, umas arrastando asas querendo voar para chegar antes da outra, um tumulto espantoso!

Acabou tudo quando todas nos rodearam atentas, aguardando o milho - nesse dia


estrategicamente não dei - elas se mantiveram em completo silêncio ao nosso redor com olhares firmes para mim na expectativa secreta entre elas e eu.... Quase não nos víamos tamanha poeira ao redor. Baixado toda esse pó, Buby ainda meio pasmo, incrédulo mas convencido sentenciou:

- Poxa Fausto, é verdade!

Entendo que a Lição para todos, é que não devemos duvidar nunca do "Talento  Nato" das crianças, seja para criar uma forte empatia com os animais, aves e talvez até répteis ou de criar uma mentira sadia - se é que existe - para tornar o Mundo um pouco mais surpreendente, coisa difícil entre nós, os adultos!

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

20) O Drama no Hospital

 20) O Drama no Hospital  

Meus amigos que me acompanham nesse blog,

Embora o título seja Drama, e devo assim chama-lo por se tratar de um período de 22 dias em que estive hospitalizado no Hospital Mãe de Deus em POA, na minha visão “otimista de viver”, relato um dado momento que apesar de todas dores de um multi-fraturado, conseguimos rir muito após o desfecho!


O Drama no Hospital !                                                                           

Se investigarmos cuidadosamente nossa vida, veremos que até em momentos de drama e dificuldade, se acham lances engraçados, senão tragicômicos. Tive um acidente sério dia doze de setembro de 1999. Estava fazendo um salto de demonstração de pára-quedas antes de um Grenal no estádio Olímpico. Cometi alguns erros, nem tão graves, mas em grande quantidade e tive que posar fora do Estádio. Para com três companheiros de salto, foi um enorme vexame. Não dá para dizer “pousei”, bati e bati forte. Resultado geral dá para afirmar que foi de muita sorte: - 1) Fratura cominutiva do fêmur direito [partido em dezoito peças]. 2) Fratura exposta do fêmur esquerdo. 3) Fratura exposta do calcanhar direito. 4) Amassamento de duas vértebras. Pouca coisa se comparada a acidentes de PQD de outros colegas que não viveram para contar, com óbito!

Durante a hospitalização, minha rotina de internado, havia um momento crítico, o pós-banho, de onde  voltava a cama em uma cadeira adaptada para aquele fim. Esse era o ponto crítico. Ser recolocado na cama. Necessário três pessoas habilitadas: Um Enfermeiro Técnico a levantar o tronco e outros dois um para cada perna quebrada. Essas não podiam ter a menor oscilação em nenhum ângulo. Levantar reto e ajustar na cama sem movimentos paralelos, senão as dores eram terrível. No calcanhar tinham dois fixadores de ação externos de aspecto horroroso. Espetos de aço que trespassavam o pé que se assemelhava aquelas antigas antenas de TV. Visão angustiante, mais feio e desconfortável do que propriamente dolorido, entretanto, intocável.numa manhã a Equipe que me banhava - isso mesmo uma equipeatrasou e eu ansioso, exigi voltar logo para cama. Com isso a Uke - minha parceira da época - pressionou a Irmã Iris, uma enfermeira bem das antigas responsável naquele turno a me coloca na cama.

Ela se prontificou a cuidar justamente da perna com aquela “grade” de aço. Freira de uns setenta e muitos anos, português misturado com alemão, sotaque de padre mesmo. Pobre senhora cuidava somente de atividades administrativas no hospital, ha muito longe do operacional, foi se meter... Mesmo com a chegada da auxiliar de enfermagem encarregada que faltava, ela não se deu por vencida:

- Tô costumata a facê totos us tia, uma veiz!

Sinceramente, me caguei de medo e não deu outra: - No momento que a desgraçada colocou minha perna na cama, perdeu o equilíbrio e caiu com tudo em cima dessa perna, aquela perna da fratura cominutiva e do pé com todas aquelas hastes externas de aço cravadas. 

ÃÃÃAÃÃEEEEEE!!! 


Dei um urro de leão para todo o andar ouvir! Ela arregalou os olhos e prontamente se justificou:

- Não foi nata. Eu xá fi coissa pem pior nessa hóspital!

O Hospital inteiro ficou sabendo da "coisa bem pior"! De gozação,  após o evento enfermeiros cobravam a Uke, por que não fez aquilo que seu olhar dizia? Olhar de ódio extremo. Vontadea esganar e jogá-la pela janela do oitavo andar. Foi acalmada, mas ainda vociferou:

- Não me bota mais os pés nesse quarto, senão eu te mato!

Agora rimos muito daquele momento especial, mas como tudo: Passou! Hoje caminho muito bem graças a Deus e ao grande período - quase dois anos - de intensa fisioterapia e exercício muito puxado.

Tudo resultado de um esporte espetacular que pratiquei com entusiasmo enlouquecido tamanha a paixão que desperta aqueles que o praticam. Estou falando em voar livre ao vento. Isso é pára-quedismo. Foi pouco mais de meia década em que tive nos céus de muitos lugares, com trezentos e tantos saltos. Período de grandes euforias com muita adrenalina, que mesmo eu aos cinquenta anos, sentia rejuvenescido a cada fração de segundo de vento forte na cara - recusava uso de  capacete - emoção indescritível, quase violenta. Recomendo!!!

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

19) O ar condicionado...

19) O ar condicionado...                      

Meus amigos,

Nem sempre o orgulho de alguns, corresponde à expectativa de outrem, de qualquer forma entendo que o que deve pautar nossa Vida é sermos felizes com o que somos e o que temos, principalmente com esse “o que temos” nos dê orgulho. Seja aquele menino com um brinquedo velho ou aquele adulto, com brinquedo novo!

Vou escrever um pouco sobre brinquedo de adulto e falo por mim: Homem adulto adora seu automóvel! Duvido algum homem que tenha esquecido seu primeiro “carro”, sua cor, marca e talvez até o número da placa! Década de noventa, os caminhonetões - F.100 & D-20 - com motor diesel, faziam a glória dos motoristas machos!                      

 

19) O ar condicionado...                                                             

 


Essa, veio lá de Jaguari. O acontecimento se dá com um índio xucro mas com bom dinheiro no bolso, o tal de Pagnollo. Comprou uma caminhonete Chevrolet numa revenda em Santiago. Zero quilômetro, completa; tinha tudo que é acessório possível em um veículo, ainda mais do valor desse em questão. Rádio, antena imensa com a bandeirinha de seu time de coração na extremidade a balançar, rodas de aço inoxidável, até uma pequena gaiola com um papagaio de plástico pendurado no espelho retrovisor, bancos forrados de um feltro verde com bordados vermelhos e uns apliques de feltro roxo de margaridas e de uma Santa que não me lembro qual!. O ar condicionado então, o que havia de mais potente e moderno.

No dia em que recebeu o carro, num sábado, duas da tarde de um Verão rigoroso que só Jaguari conhece. Uns quarenta graus à sombra, sensação térmica do interior de uma chaleira com água pronta para chimarrão, sem nenhum vento a soprar, mormacento, daquelas tardes que não se vê nem cachorro se coçando na rua da cidade inteira. No calçamento - em decorrência da forte seca - um reflexo como gasolina evaporando. As raras pessoas na rua, caminham bem devagarinho arrastando o chinelo e ao se encontrarem, se cumprimentam só com um aceno das  sobrancelhas, de tanta preguiça! Só se ouve cigarras cantando prenúncio de mais seca. Daquelas tardes de tanta preguiça que se tu encarregar um moleque para tomar conta de duas tartarugas, uma foge...

Vamos ao fato: Nesse dia havia um Rodeio Crioulo em São Francisco de Assis e o Pagnollo pronto para sair com sua caminhonete nova, chama seu filho:

- Júnior, põe o ar condicionado aí no máximo que eu não sei ligar esses botãozinhos de merda...

se foi ele na cabine gelada da D-20. No trevo de São Vicente um guasca pedindo carona, caprichosamente pilchado e a rigor, todo de preto em pleno sol, camisa de mangas comprida, abotoada até o pescoço, sem exagero, maquela hora devia estar uns cinqüenta graus. Suado, o coitado estava pálido de tanto calor. Atencioso, o dono da D-20 para e o desmilinguido embarca.

- Buenas prá lá e buenas prá cá!

Segue viagem. O destino de ambos era o mesmo: O Rodeio. Fecha a porta, o guasca passa um trabalho danado para colocar o cinto de segurança a pedido do motorista e nestas alturas o potente ar condicionado está botando vapor pelas ventas. Fazia nuvens de tão gelado! Dali a pouco o índio para de falar. Foi se enrolando no pala, se encolhendo todo, unhas e lábios ficando arroxadas e ele só esfregava as mãos. Por mais que o motorista puxava assunto, o caroneiro só fazia movimento com a cabeça afirmando que sim ou que não e ainda mexia com os ombros para informar que não sabia. 

Uma hora depois de estrada poeirenta e cheia de buracos, o cara tremia batendo os dentes de tão gelado! Ainda mudo só foi falar na chegada ao destino final:

- Cheguêmo! Graças a Deus! E quanto lhe devo pela carona?

- Ora tchê, um homem com uma caminhonete linda destas vai precisar cobrar pela carona?! É de graça vivente!

- Ma entonce muchas gracias! Mas é verdade, sua caminhonete é muito bonita uma barbaridade, mas tô até cum pena do sinhô!

- Mas tu tá loco, tchê! Pena de mim por que?

- Se agora no Verão tá um frio desse jeito aqui dentro, imagino no inverno o frio desgraçado que o sinhô deve sofrer...

É difícil contentar a todos, mas também ninguém é obrigado a conhecer tanta tecnologia a ponto de tornar subitamente o Verão em uma estação temporariamente fria!

 

Porto Alegre 10 de setembro de 2020.

 

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

18) Quer que eu diga?

 18) Quer que eu diga?

Estimados leitores,

Não me considero uma pessoa requintada, mas tenho um mínimo de polimento que me permite frequentar lugares onde se exija etiqueta e postura elegante. Me adapto fácil e rapidamente, embora eu prefira bermudas e chinelos no Verão. Vez por outra a gente se depara com pessoas exageradamente finas cujo comportamento às vezes nos constrange, até inibem. Faz confundir com pessoas FRESCAS!

Fui criado no interior do RS onde as coisas simples, íntimas e carinhosas predominam o que acho mais agradável de conviver. Também ocorre de algumas pessoas mais toscas cruzarem nosso caminho e nos divertir, as vezes até assustar tamanho grau de simplicidade, se é que me entendem...

 


18) Quer que eu diga?                                                                   

Foi numa noite de verão, que fui com a Uke jantar na Churrascaria Barranco em Porto Alegre. Sentado na área interna na ala dos não fumantes, me colocaram ao lado de um curioso casal. Ele com um bigodão imenso, grosso, preto, parecia que tinha engolido um cavalo inteiro mas só o rabo ficou de fora da boca. Bigodão que tapava parte do nariz e até o "beiço" inferior! Pele queimada do sol com marca na testa do uso de chapéu. Mostrava claramente suas origens, tipo bagual. Homem forte, aparentando uns cinqüenta anos, se lambuzava estraçalhando um churrasco de costela. Ela, a moça, mulata gordota, meio sem pescoço, bastante batom vermelho, tipo chinoca xucra que só abria a boca para enfiar o garfo, sempre bem cheio é claro. Não dizia uma palavra, só acenava com a cabeça para concordar com o que “índio véio” charlava. Com ar de desconfiada, só engolia. Não me parecia mastigar. Acho que nem tinha dentes. Só gengiva...

Com mesas lado-a-lado, ele que ficava de frente para mim falando alto, se exibindo conhecedor na Capital, que conhecia a Avenida Farrapos, não se perdia na rodoviária, sabia onde era a Santa Casa, enfim, se mostrava experiente em transitar na cidade, uma barbaridade! Como ela não reagia a nada, ele às vezes dizia coisas engraçadas e me olhava procurando apoio. Por educação e constante "pressão visual", num momento qualquer eu inventei de sorrir. Foi meu primeiro erro da noite. O cara sentiu que achou um amigo para conversar. Puxou assunto falando bem mais alto, e diretamente comigo. Quis logo saber “de adonde” eu era e se identificou como “um guasca” parido com muito orgulho no Jaguarão, !

Trabalhava na fazenda do Dr. Fulano de Tal e que além de Capataz, guasca tropeiro era também poeta e foi puxando da guaiaca uns manuscritos amassados em papel de pão, escritos com lápis e com letra quase ilegível. Linguajar chulo! Para ser mais justo: Um horror! Palavras que encabulariam até o mais vulgar dos comediantes! Uma delas  contava que "ao comer uma égua a puta lhe cagou nas bombachas!"  E ele continua falando cadas vez mais alto. Do "potro que lhe derrubou com o cu no chão lhe esmagando os colhão” e assim por diante... Poesias de arrepiar. Eu não tinha mais coragem de olhar para os lados, vai que tem algum conhecido a imaginar que "baita amigo que me acompanhava na churrascaria! "Grosso até para cabaré fuleiro".  Esbanjava bom gosto e requinte... Interrompeu a leitura e me olhava sorridente, orgulhoso, com os olhos faiscando na busca de elogio. E aí vem a pergunta em voz de uma trovoada:


- E daí, gostou vivente?

Por educação respondi bem baixinho, um minguado sim! Segundo erro da noite! Aí ele me tasca a pergunta fatídica, letal que inicialmente não entendi:

- Qué que eu diga?

- Sim, claro! (?)

O que significava exatamente aquele “qué que eu diga”,  eu não captei! Pois foi o último e definitivo erro da noite. Ele se levantou – o índio era alto e forte – o restaurante lotado e com aquele burburinho natural da sexta-feira à noite, olha para mim e diz em alto e bom tom:

- Tu que conhece essa indiada tchê, pede prá fazê silêncio aí que eu vô dizê...

Pigarreou a garganta, botou um pé para a frente, peito para fora e olhar para o alto, fez pose da Estátua do Laçador. Me olhava as vezes com o canto dos olhos aguardando minha atitude de "Mestre de Cerimônias"! Ainda fazia um sinal com o queixo, como quem diz: "Vamos, te mexe!" Meu Deus! Aquele animal queria declamar diante daquele restaurante lotado,.mirava o grande público que ali jantava. Eu entrei em pânico. Fiquei roxo, não sabia como sair daquela fria. Daí implorei, quase chorando:

- Espera só um pouco. Agora esse pessoal não vai entender nada. Estão fazendo muito barulho com talheres, copos...  Espera só mais um tempinho que eu vou providenciar tudo! Senta aí por favor!

Ele se sentou. Deu uma "bufada" de touro bravio e ficou sério me esperando... Ficou brabo comigo. Certamente feri seus sentimentos poéticos! Sem outra saída, interrompi meu jantar e cochichei ao ouvido da Uke:

- Levanta, vai lá no balcão, paga a conta e me espera por lá que eu já vou...

Ela foi. Dei um tempinho, disfarcei e fiz um gracejo com ele:

- O Patrão não me leve a mal, eu já volto, mas me dá sua licença que vou ao banheiro, senão me mijo todo...

Ele deu uma gargalhada para toda a churrascaria ouvir, se “espraiou na cadeira”, voltou a sorrir  e me apoiou:

- Pode ir que eu te aguardo aqui guri!


Fui rápido até a copa, sem olhar para trás, peguei a Uke pela mão e sai quase correndo porta a fora do restaurante, fugi . Entrei no carro e saí cantando os pneus! Não voltei lá por muitos dias, espero que ele – se é que "disse seus versos" – tenha sido aplaudido, porque eu estrategicamente renunciei aquela missão... Não penso ser empresário de declamador tão cedo! Aliás, nunca mais tive uma "ameça de constrangimento" tão forte! Fui!


Porto Alegre, 03 de setembro de 2020.