quarta-feira, 25 de novembro de 2020

30) Afogamento II

 30) Afogamento II.

 

Durante muitos anos a Sociedade de Jaguari fazia o então famoso “Baile da Praia”! Eram duas noites de verão, em que montavam um tablado sobre estacas unindo a margem do rio até a bucólica ilha, pista de dança e mesas com algo de uns oitenta metros quadrados, talvez mais. Orquestras de alto gabarito de pelo menos vinte músicos – possível na época - sem aquela amplificação enlouquecida de som e ocorria, tenho certeza, um dos mais belos espetáculos que lembro com muita saudade. Estrategicamente eram escolhidas noites de Lua Cheia que iluminavam em meio a Natureza com sua mata nativa, ruído do rio, lanternas japonesas, tornavam enfim um evento único! Tudo conspirava ao romantismo e inesquecíveis momentos!

Além do baile tradicional, a Comunidade programava alguns momentos de arte com humor e a tradicional eleição da Rainha do Evento, apresentações e curiosamente um Balé Aquático que observado do salão de dança, afinal de contas ele estava instalado sobre o rio, fazia da festividade momentos de muita diversão e encantamento!

Esse balé, era ensaiado por muitas noites seguidas, ao lado de onde se montaria o tablado. Um grupo de meninas da cidade compunham esse seleto grupo. O local era de água parada e profunda, que facilitava a natação, no entanto exigia cuidados.

Pois bem, nestas ocasiões eram convidados alguns jovens da Sociedade, dois ou três garotões atletas da época, que ficavam zelando alguma eventual emergência. Camotin (também conhecido como Kolvinko) e eu éramos apenas dois moleques adolescentes que sequer merecíamos honroso convite, embora com a expertise relatada na crônica anterior.

Numa noite, a "bailarina" Hya teve câimbras e passou mal. Seu orgulho de exímia nadadora não permitiu pedir ajuda, pelo que não chamou atenção necessária dos salva-vidas oficiais de plantão.

Eu e Camotin  percebemos o que estava acontecendo e nos jogamos ao rio para socorre-la. Rápida aproximação e cheguei procedendo protocolo como treinávamos abraçando-a por trás – ela era maior que eu – e com estrema dificuldade fui nadando com uma mão só “bebendo água” e a outra mão que resvalava de sua axila, tocava no seio. Numa hora dessas, não há erotismo algum e sim um absoluto desespero. Camotin ficou nadando defronte a ela querendo ajudar, mas sem efetividade, pois eu já tinha pego a vítima. A maioria nem percebeu claramente a nossa “heroica ação”, senão quando já estávamos chegando à margem. Aí, todo mundo ajudou!

Bailarina salva! Sentada na areia tossindo e choramingando enquanto eu me jogava na areia exausto, cuspindo água meio morto meio vivo. Camotin, que embora não tivesse ajudado merda nenhuma, ficou em pé triunfante defronte a vítima, orgulhoso, ostentava musculosa pose de Tarzan, o Herói! Quando ela se recobrou parcialmente, ainda meio chorando, perguntou quem tinha socorrido?!

- Foi tu Camotin?

- Claro! Eu estava aqui para isso, e...

 Disse o “ladrão de salvamento”, enquanto eu me recuperava! Me deixou de lado e foi colhendo os gloriosos louros sozinho cheio de orgulho e muito faceiro! Entretanto, ela responde rispidamente:

- Seu tarado, bagaceira, safado, ordinário tinha que abusar de mim, tinha? Pensa que eu não senti onde tu me agarrou, seu filho da puta!

- Desculpa mas eu tava...

- Desculpo coisa nenhuma. Some da minha frente, seu aproveitador sem vergonha !

Todos os que assistiam a curiosa discussão - sem entender - permaneceram em  respeitoso silêncio! Eu tossindo, me mijava de rir mas me mantive  humilde em reflexivo e conveniente silêncio diante das nefastas circunstâncias! Nesse dia encerrei uma provável brilhante carreira de Salva-Vidas! A incompreensão da Humanidade às vezes extrapola o bom senso e nos afasta do convívio social e de encantadoras projeções de futuro!

Dia seguinte voltei a me dedicar ao curso de datilografia!!!



quarta-feira, 18 de novembro de 2020

29) Afogamento I.

29) Afogamento I.


Não me canso de repetir o quão importante em nossas vidas foi o Rio Jaguari na nossa Cidade Natal. No verão, nas horas de folga eu estava lá, nadando, mergulhando e quando o rio estava mais cheio, trepando em árvores para saltar. Trepando no bom sentido, do “verbo subir”, sem nenhuma conotação libidinosa!

De tantas coisas que se fazia, Kolvinko e eu treinávamos insistentemente o salvamento de afogados. O rio era relativamente calmo, mas reservava algumas surpresinhas que tristemente levou algumas vidas, inclusive de amigos nossos!

Kolvinko e eu tínhamos algumas técnicas eficientes – criadas exclusivamente por nós dois -  que nos permitiam sair de algumas armadilhas que a vítima impõe, quando em salvamento/pânico, como as de se agarrar desesperadamente e levar seu salva-vidas junto ao afogamento. Uma das técnicas “cientificamente desenvolvidas” pela dupla, é a de tontear a vítima com uma pancada suave na cabeça! As vezes nem tão suave. Dessa forma com o corpo relaxado, a vítima torna menos difícil de nadar com um único braço, pois com o outro, segura-se o corpo por trás, por debaixo de seus braços. Não é nada fácil, mas com bom treinamento se consegue e dá ao “salva-vidas” uma adrenalina fulgurante, salvar alguém gera uma indescritível alegria!  

Numa tarde de domingo estávamos na ilha e vimos dois “estrangeiros” de Santiago que ao descer a cachoeira se depararam com o “poço”, já conhecido pelas frequentes surpresas aos incautos e começaram a se debater com um deles pedindo socorro. Em disparadas lá fomos nós ao salvamento. Próximo dos dois o Cauby, ou melhor, o Kolvinko pegou por trás o que estava pior e eu peguei o outro, que para me dificultar, estava de frente para mim e gritava desesperado palavras incompreensíveis e tentando me agarrar. Não tive a menor dúvida: Assentei-lhe um murro na testa que ele ficou estrábico. Voltei na tentativa de resgatá-lo, novamente tentou me pegar, pois não estava suficientemente tonto. Pensei, "será que vou ter que buscar uma caipirinha para esse desgraçado tontear?" 

Novamente, prendi-lhe outro soco na testa com mais força, mas o rapaz, era forte e não deu sinal de tontura, até ficou com cara de brabo, sem vacilar, retomei o fôlego, renovei com mais força e meti-lhe com toda, mais uns dois ou três socos. Eu cansado já não acertava mais a testa, era pelo meio da cara mesmo! Então ele meio nocauteado se entregou e eu tomei-o por trás e heroicamente o reboquei até a ilha para os cuidados finais, agradecimentos, aplausos, ovação do o público que assistia com um sonoro,  viva o Kolvinko e viva ao Fausto, etc. Afinal era disso que vivíamos aqueles raros dias! 

Óbvio que nada disso ocorria. O máximo que ouvíamos de alguns que assistiam era:

- Deviam ter deixado morrer, para apreender a respeitar o rio!

Quando a “minha vítima” se recobrou, olhou para mim com a cara inchada e olhar de cachorro que tinha apanhado e sinais claros de ódio, sentenciou:

- Pô, eu sei nadar cara! Eu tava salvando meu amigo e gritei que não precisava de ajuda! Olha o que tu fez comigo cara, qualé? Tu tá lôco tchê?! Te deixei me socorrer prá tu parar com aquilo!

Bom. Entendi e não reclamo a falta de agradecimento do rapaz. Ele tinha lá algumas razões para não ter simpatizado muito comigo, fui apenas mais um salva-vidas mal compreendido!


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

28) Foguete Colhudo...

   28) Foguete Colhudo...      


O meu Povo de Jaguari, meus conterrâneos como eu próprio gostamos mesmo é de festejar, qualquer coisa justifica soltar foguetes, por exemplo. Muitos foguetes. 

 
Foguetes para Festa de Igreja, chegada de visitantes para o jogo de bocha, o dia de São Cristóvão, comício, batizado, aniversário, chegada da Rainha de não sei lá o que, jogo de futebol, vitórias, enfim...  Mas está absolutamente certo. Não tem coisa melhor do que festejar uma glória com bastante barulho. Não é barulho por nada, é barulho por alguma coisa que se conquistou então se partilha com todo o mundo ruidosamente. Isso faz bem para o ego, o superego, o id e sei lá mais o que Freud poderia inventar, para justifica esta loucura pirotécnica que nós Jaguarienses, gostamos tanto!

Pois teve um domingo, em que Grêmio ou Internacional ganhou um campeonato gaúcho, e lá se foram quatro torcedores para a passeata em meio a mais algumas dezenas de carros – era assim que se chamava, hoje se chama carreata – claro é que cada componente em seu carro carregava uma farta bateria de foguetes.

Pois esse quarteto pilotava um Fiat 147 bem velho, soltavam um tipo foguetes que dispara dez tiros fortes e no final, um último extremamente forte, enorme, violento! Este, o último tiro, era apelidado, pelo seu potencial destrutivo e dominante de o “colhudo”! A festa em plena Rua Sete de Setembro rolava alegremente, fazendo sua baderna peculiar e o “trago de canha” corria solto, afinal, tomar uns tragos é bom até sem motivo, imaginem tendo uma boa razão para isso!

Num dado momento, o motorista eufórico, atrapalhado com uma mão no volante, a outra na garrafa, outra fazendo mudanças e ainda mais uma outra com um foguete aceso! Ora, não precisa ser um grande matemático nem especialista em anatomia humana, ortopedia para perceber nessa aritmética que faltou mão.... Tanta ação simultânea que um desses foguetes, foi pego com o cabo para fora do carro e a ponta de disparo, para dentro. E disparou! Ao perceber a grande cagada, já era tarde demais! Freia abruptamente o carro e comanda aos berros:

- Saiam do carroo, saiam do carroooo...

Nem um dos quatro ocupantes conseguia sair de uma minúscula cabine com apenas duas portas com a emergência exigida. Em fração de segundo começa a pipocar o foguetório em meio a deles! Desespero para parar totalmente o carro, soltar cinto de segurança e saltar fora e as explosões se sucedendo aterrorizantemente. Em pânico  gritavam desesperados:

- Falta o colhudo, falta o colhudo...

Quando conseguiram parar o carro e voar para fora, deixando calçados, pedaços de roupa algum pedaço de pele para trás e em meio a uma nuvem de fumaça, o colhudo estourou! Foi uma explosão tão forte que o assoalho do Fiat, já meio podre, arriou em plena avenida! Os bancos do carro solidários ao velho assoalho também caíram! Por sorte e incrivelmente ninguém se feriu, só o susto, mas que susto! Ou como diria Mano Lima: “Mas que baita cagaço tchê!”

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

27) Troca de ouvido, mãe...

Sempre que viajo, que me exponho a outras culturas fico nos primeiros dias muito atento para não cometer gafes ou até mesmo provocar situações indesejadas preocupado sim "do que os outros vão pensar"! Afinal de contas, quando estamos visitando outra Nação, temos no mínimo que procurar adaptação e aceitação dos costumes locais. Uma delas por exemplo, em território americano, é de que devemos evitar o olho no olho com desconhecidos, ao menos que estejamos preparados para ouvir um O QUE FOI indignado de um gringo ou da gringa que estamos observando... Se respondermos, certamente estaremos provocando uma discussão inútil e de repercussão inimaginável!

O fato que vou narrar, aconteceu no Chile e não contempla nenhum diálogo com nenhum chileno que me assistia ocasionalmente ao telefone, mas que despertou atenção unilateral deles comigo! 


 27) Troca de ouvido, mãe...


Final de 1993 eu comentava com meu irmão, pouco mais velho, o Maninho, que estava difícil ligação de Porto Alegre para Jaguari a falar com a mãe. Ele comentou:

- Pobre da mãe está com um problema em um dos ouvidos. Quando isso ocorrer, diz a ela para trocar de ouvido, aí ela vai te ouvir normalmente.

Apreendi! Final do ano viajei de carro a Argentina e Chile visando fazer pela primeira vez, o cobiçado “Circuito Andino”! Depois da travessia de toda a América, via Uruguai, Argentina, a fantástica passagem pelos Andes chegamos a Santiago. Como planejado, tirei uns dias de descanso na Capital chilena. Em um dia qualquer ainda em Santiago, deixei o carro no hotel e fui via aérea a Puerto Varas, no Sul do Chile, Região dos Lagos. Havia me “batido a preguiça” de dirigir mais 2.000 km (ida e volta) mesmo com a Rodovia Pan-Americana, moderna e de muito bom piso asfáltico. Chamou-me atenção uma promoção de pacote aéreo para a Região, muito interessante, comprei!

No dia da partida, ainda no aeroporto doméstico de Santiago bateu a saudade dos meus Velhos e fui telefonar para casa! Não havia cabine telefônica, nem orelhões. Os telefones públicos eram instalados nas paredes do saguão, um ao lado do outro sem nenhuma proteção acústica. Liguei para Jaguari e a mamãe atendeu. Sempre com muita alegria, mas pediu para eu falar mais alto porque estava difícil me ouvir. Lembrei da recomendação do Maninho:

- Troca de ouvido, mãe!

Ela não entendeu. Ouvi-a ainda comentar com o Papito:

- É o Fausto! Está telefonando de longe, que pena, não dá para ouvir direito...”

Ouvindo isso, fiquei angustiado e repeti um pouco mais alto a recomendação para trocar de ouvido, mas sem resultado. Novamente quase gritando. O mesmo. Mais uma, desta vez não era quase gritando, era gritando mesmo. Outra vez, gritando mais forte. Outra a todo pulmão e novamente já me esganiçando e mais uma que eu me curvava as costas para o som sair mais alto. Minha persistência tinha um grande impulso, porque apesar da ligação ruim, eu a ouvia perfeitamente, e ela se lamentava chorosa de que sabia que era eu que estava falando, mas não conseguia me entender! A emoção toma conta de mim de tal forma, que me dava ânimo renovado. Reconstituía respiração e coragem de seguir em frente com gritaria plena. 

Eu já não expelia só a voz, me cuspia todo e meu pescoço parelho das orelhas aos ombros de tanto esforço vocal e nada. Aumentei o que deu o volume repetindo sempre a mesma recomendação, aquelas quatro palavras mágicas:

- Manhê, troca de ouvido...




Fui sentindo um calor intenso no corpo, mas não desisti, não me entrego tão fácil e continuei repetindo com o volume de voz que me era possível, embora a garganta já em pandarecos. Interrompia por alguns segundos para tossir um pouco, respirar fundo e voltar no mesmo tom! 
A ligação era cara, tinha que aproveitá-la. Novamente aos berros e assim me mantive por alguns minutos, até que exausto, molhado em suor, me rendi! Pus o fone no gancho ofegante e me escorei no próprio aparelho para recuperar o fôlego por algum tempo. Paciência. Não há o que se fazer! Não deu!  Fui derrotado. Ponto final!

Virei-me para comentar o triste insucesso com a Ukê que aguardava ao meu lado. Cadê ela? Sumiu! Desapareceu. Me abandonou covardemente em um telefone público.

Fiz um "olhar de varredura" no saguão da sala de embarque e finalmente avistei-a na outra extremidade do aeroporto, meio escondida com seu rosto num vermelhão incrível. Parecia um tomate maduro. Segurava a barriga de tanto rir! Obviamente com vergonha do meu show! Inicialmente não entendi sua atitude. Olhei ao meu redor e ENTENDI: - Belo escândalo! As pessoas no saguão no maior silêncio a me olhar com espanto. Alguns rindo, crianças chorando, outros com olhos arregalados e ar de medo, outros procurando se afastar de mim recolhendo a Família... Estavam definitivamente diante de um louco a berrar palavras incompreensíveis... 

Bem, foi a vez de eu avermelhar de vergonha! Tossi discretamente para disfarçar não sei bem o que, fiz um sinal como que pedindo desculpas, simulei procurar algo nos bolsos e sai de mansinho direto ao banheiro onde permaneci por alguns minutos esperando que “me olvidassem”... Esses chilenos têm dificuldade de entender um brasileiro ao telefone, só porque apresentava sinais de loucura! Monumental fiasco internacional! Que orgulho!