quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

31) O Trem Noturno.

31) O Trem Noturno

Meus amigos,

Um pouco do passado distante: - Nosso Brasil foi muito expressivo e avançado nesse modal de transporte. Conta do Século XIX o primeiro trecho - Tempo do Império - de quatorze quilômetros a iniciar na "Guia Pacobaiba", estação preservada até hoje. Essa destacada posição foi em especial graças ao arrojo de Barão de Mauá que com financiamento e riscos pessoais, fez o transporte ferroviário evoluir e ganhar destaque mundial! 

Lamentável que em algum momento da História recente, o transporte de passageiros foi abandonado e o de carga de certa forma sucateado. 

As viagens de trens que fazíamos, guarda grande saudade. A que contarei agora, em especial, trata de uma viagem que fiz com um grupo de amigos em 1970 e foi tristemente a última viagem de trem que fiz no Rio Grande do Sul.  Doze anos mais tarde foi a vez de conhecer e utilizar esse transporte entre Rio e São Paulo.


31) O Trem Noturno.                                            


O "Noturno", como o chamávamos, era um trem que saia na noite de Porto Alegre e passava por Jaguari lá pelas 10:00 hs do dia seguinte, numa viagem pitoresca de umas doze horas de duração. Havia um carro leito, com custos mais elevados, que se podia tirar uma boa soneca. Nunca tive este privilégio, mas ouvi falar que era bom. Absolutamente incompatível com o poderio econômico que meu bolso representava!

Ao completar meu primeiro ano na Capital, em 1970, fui de trem curtir o Carnaval em Jaguari. Formamos um memorável grupo de amigos: O Gordo, Tadeu, Léo, Gilseu, Tono, Edgar "o cunhado", Campanher o "Santiagua" e eu compúnhamos essa ruidosa trupe. Podem imaginar a alegria de oito “pós adolescentes” fazendo provavelmente sua primeira viagem sem os “cuidados da mamãe”. Melhor ainda, voltando para casa a curtir uma festa de Carnaval! Euforia solta e sem controle!

Na saída, o trem lentamente pela Rua Voluntário da Pátria diminuiu ainda mais seu ritmo e parou. Foi o que bastou para o Santiagua descer e pegar num boteco qualquer, um litro de canha “Fronteira”, cachaça mais conhecida da época, . A festa começou: Gilseu tinha uma vitrola portátil e fazia a música. Uma chamada especial com um disco cantado pelo "Topo Gigio"! Sucesso absurdo da TV naqueles dias! Tínhamos somente uma poltrona de dois lugares para todos, então todos em pé! A baderna era tanta que vinham passageiros sem sono, de outros vagões só para se divertir com a nossa bagunça!

Acontece, o que é natural, é que havia dezenas de passageiros do nosso vagão, que queriam dormir e começaram a reclamar e foram tantas as reclamações, sem que déssemos a menor importância até que o Chefe-de-Trem fosse chamado a intervir:

    

Também não demos a mínima. Fomos ameaçados. Nos mantivemos surdos às reivindicações de silêncio. Enfim a ameaça derradeira:

- Em Cachoeira vou chamar a Brigada Militar!

Ao som romântico do "ta-clac-ta-clac" dos trilhos o entusiasmo da fuzarca só aumentava ! 

E não é que em Cachoeira ele chamou a polícia mesmo?! O trem para na gare e lá veio ele bufando sobre seu grosso bigode acompanhado de dois policiais da Brigada Militar grandes, ambos com cara de mau, bem fardados, cassetetes em punho, revólver na cintura capacete e todo preparo para  guerra! Sinceramente, cagaço anunciado! Então ele vociferou:

- Agora todo mundo prá Delegacia! Acabou o Carnaval nesse vagão!

O Tono, que havia acabado o CPOR (lembrando que nesse ano, o Governo Federal Militar tinha uma força extraordinária) como Segundo Tenente, falou do alto de sua Exuberante Autoridade Militar:

- Sou um Oficial do Exército Brasileiro, e brigadiano não tem autoridade suficiente para me tirar deste trem e muito menos aqueles de quem eu sou responsável! Agora, só um Oficial da Polícia do Exército tem poder para discutir esse assunto comigo! Eu falei DISCUTIR!!!

Dou ênfase, a esse breve e valente discurso, proferido em nossa defesa e a tamanha repercussão Nacional que estava por se provocar: - Ora, nessa época de Repressão da Revolução de 1964, o Exército mandava com voz grossa e com muita autoridade em nosso País! O Tono com apenas dezenove anos, encarnava a própria figura do Poder Nacional. Impostação e elegância de um Oficial do Exército ele teve de sobra! Nunca me senti tão importante e protegido por um guri, quase um ano mais novo que eu, mas que agora rocou grosso e bonito! Afinal, todos nós - teoricamente - fazíamos parte daquele grupo que ele assumira responsabilidade espontaneamente. Que emoção ao ouvir um sonoro e empolgante discurso de um Verdadeiro Representante das Forças Armadas Nacional. Soaram efusivos aplausos e delírio de todos aqueles que não tinham sono e queriam continuar a fuzarca!

No entanto O Chefe-de-Trem, com seus dois Soldados, se manteve inabalável e o Tono ainda os peitou encerrando o caso: 

- Podem sair daqui, agora!

- Sua identidade militar senhor, por favor.

- Um minutinho! Onde está? Cadê? Acho que esqueci em casa...”

Tono tinha deixado a bendita identidade em casa. Quase me mijei nas calças. Bem, aí o Brigadiano cresceu pelo menos três metros em altura e dois para os lados, ficou um gigante e lascou sem ao menos um "sorrisinho" prá nós:

- Todo mundo pra fora do trem agora. Já pra delegacia, todos!

Pânico generalizado. Quem seriam esse tal de "todos" que seriam levados à Delegacia?! Nós! Tono, eu calculo que voltou aos sete anos de idade. Vamos perder o Carnaval em Jaguari. Que desgraça. Já era madrugada de sábado e ficaríamos no merecido cárcere até a quarta-feira de Cinzas! Ah se arrependimento matasse! Nossa valentia sofre um "derretimento" assombroso. Vexame absurdo e reduzida a um "estado de cagaço" invejável! 

Gilseu em silêncio até aqui, escondeu seu toca-discos e assumiu a defesa. Subiu num banco, ajustou voz de seminarista e orou, ou melhor falou em tom Franciscano:

- Perdão! Clemência! Uma toleranciazinha para um humilde grupo que ficará em total silêncio para o resto da viagem! Juro!

Não teve crédito algum. A decisão estava tomada. Uns choramingavam, todos muito humildes com semblantes da Madre Thereza de Calcutá sob chuva! Tono com a voz bem, mas bem mais fina ainda que seu primeiro valente pronunciamento, fez seu último comovido apelo:

- Deixem eu ficar. Não posso abandonar minha prima de nove anos, que está sozinha no vagão leito! O que será dela?

Isso complicou a vida dos policiais. Havia uma menor de idade, criança envolvida. Mas eis que Gilseu volta e arremata com nova e emocionada intervenção, milagrosa! Sábia frase digna de um Monge Tibetano:

- Errar é humano senhores, perdoar é Divino! Perdoe-nos senhor Chefe-de-Trem! Lhe suplico com toda humildade!

Chefe-de-Trem que não era burro, sabia que prender um monte de adolescentes e até uma criança que certamente dormia em outro vagão, ia dar um trabalho enorme na Delegacia, além de ter que acompanhar o "pelotão de presos"... O trem ficaria esperando na gare? Claro que não!

Perdoou! Nos abraçamos felizes e seguimos viagem com o rabo entre as pernas em absoluto e religioso silêncio até Santa Maria para dali aguardar “baldeação” para o outro trem que nos levaria ao destino final: Jaguari!

Tivemos um sossegado Carnaval cheio de gratidão ao inesquecível e bondoso Chefe-de-Trem!

 

12 comentários:

  1. Adorei Fausto! Como sempre genial tuas crônicas.

    ResponderExcluir
  2. Que baita susto!! Muito Bom!! Salvos a tempo!!

    ResponderExcluir
  3. Bahh Fausto, maravilha!!!!
    Foi ben assim e foi una aventura que não sai das minhas boas lembranças.
    Eu tinha concluido o serviço militar no CPOR e estava em pleno estágio de instrução no quartel 12° RRec Nec na Serraria.
    Já viu né. Estive sugeito até a levar uma cana ni quartel também. Ainda bém que naquela hora da madrugada os brigadianos não conseguiram buscar nenhum oficial da brigada, além do fato da oração e sermão do Gilseu ter acalmado o chefe de trem e brigadianos.
    Sem dúvida foi um grande "aquecimento" oara um maravilhoso carnaval na terrinha.0

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado Tono, ou José Antônio, por ter permitido que eu usasse teu "apelido de Família"! Procuro preservar, menos meu próprio nome, mas é muito interessante a identificação, embora por "apelido", porque dá o aval das histórias, como disse em crônica anterior, preservo a verdade e quase a totalidade das crônicas estando eu diretamente envolvido, embora nem sempre como "Personagem Central" do fato!

      Excluir
  4. Quase antecedentes policiais! Hahaha

    ResponderExcluir
  5. Nossa, tempo bom, lembranças boas que jamais serão esquecidas!valeu a bagunça!

    ResponderExcluir
  6. Boas lembrancas do meu irmão Gilseu e sua i separavel vitrola.

    ResponderExcluir
  7. Não era uma turma, vocês eram uma equipe parece muito bem organizada estrategicamente. Muito legal.abs meu querido amigo e conterrâneo Fausto!

    ResponderExcluir
  8. Mas que maravilha!! Perder o carnaval de Jaguari seria uma lástima, sem duvida! E viva o chefe do trem! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

    ResponderExcluir
  9. kkkkkkk, adoro essas coisas que adolescentes fazem sem noção. Como tu disse em outro conto mesmo, acham que sabem tudo.....

    ResponderExcluir